Como ampliar os investimentos em startups lideradas por mulheres?
* Por Fernanda Caloi, gerente de programas do Google for Startups
Em 2019, houve um salto no número de startups lideradas por mulheres que se tornaram unicórnios no mundo. Com os desafios dos novos cenários, porém, os números foram se tornando novamente discretos
Após tanto tempo inserida no mercado de inovação, é difícil para mim, que também sou empreendedora, não pensar diariamente nas barreiras e obstáculos enfrentados pelas mulheres corajosas que se levantam e se lançam no desafio — e satisfação — que é empreender.
Pessoais ou profissionais, esses pensamentos persistentes sempre se conectam a muitas histórias femininas que já conheci, principalmente por meio do Google for Startups, onde atuo desde 2016. Relatos de mulheres que fundaram suas empresas por vislumbrarem uma grande oportunidade ou porque conciliar a maternidade e o trabalho se tornou um fardo, ou ainda daquelas que pelo desejo de impulsionar outras, assumiram o papel de líder.
Ainda que diversos e únicos, os relatos apresentam uma característica comum: diferentemente das histórias de homens empreendedores, as histórias femininas sempre são contadas com pitadas de sacrifício e muita luta desde o início, ainda mais tratando-se do mercado de tecnologia. Por que essa diferença se as startups fundadas por mulheres são tão promissoras quanto qualquer outro negócio liderado por homens?
Em 2021, nas diversas listas de levantamento de unicórnios em potencial no Brasil que eu como uma grande curiosa analisei, encontrei exclusivamente nomes masculinos, estivessem eles nas posições de fundadores ou cofundadores. Realidade que, inclusive, se repete na maioria das recém-publicadas listas de 2022. Vemos listadas startups criativas, com uma identidade sólida e que tiveram o essencial: investimento de risco para se desenvolverem.
Esse aspecto, no entanto, apesar de representar a alma do empreendedorismo, se mantém ausente da narrativa de tantas figuras femininas que, geralmente, só conseguem essa captação quando a startup já está em um estágio mais adiantado de crescimento ou com muito mais esforço do que seus colegas homens. Isso mantém o meu questionamento: se as startups fundadas por mulheres são tão sólidas, criativas e promissoras quanto as criadas pelos homens, porque ainda sofrem para conseguir investimento?
Uma questão de gênero
Me debruçando nos dados do Female Founders Report 2021, vi que 46,2% das empresas têm como CEO uma mulher, uma porcentagem quase equitária e que me deixa esperançosa. Porém, tratando-se do empreendedorismo de inovação, apenas 5,1% das empresas contam com pelo menos uma cofundadora. A taxa, que já é ínfima, cai para 4,7% quando falamos de startups que foram fundadas exclusivamente por mulheres, negócios que, em 2020, receberam somente 0,04% do capital investido no mercado de inovação.
Em comparação aos dados de 10 anos atrás do estudo, a evolução ainda é pequena, porém bem-vinda, com um crescimento tímido de 0,3% na participação feminina na área, que antes representava 4,4%. Olhando para a rede de startups apoiadas pelo Google for Startups nos últimos anos, os números são mais expressivos, resultados de ações consistentes com foco em diversidade, como a última turma de Residentes que selecionamos em 2020, com 50% de startups fundadas por mulheres (como a Linker da Ingrid Barth, a Creators da Nohoa Arcanjo e a Vittude da Tatiana Pimenta), ou o Google for Startups Accelerator em 2021, que selecionou apenas startups com mulheres como fundadoras ou em cargos de liderança.
No total, 28% das startups que integram a nossa rede alumni são fundadas por mulheres.
Porém, dentro dessa mesma rede, as startups fundadas por homens levantaram investimentos, em média, 16% superiores à média registrada pelas startups fundadas por mulheres. Se olharmos apenas para figuras de investimento um pouco mais elevadas, as disparidades continuam: dentre as startups da nossa rede que já levantaram mais de US$ 1 milhão em investimento, há 2,4 vezes mais startups fundadas por homens do que fundadas por mulheres.
Outras iniciativas também estão buscando incentivar o empreendedorismo, mas ainda há um longo caminho a trilhar. Se há uma coisa que eu absorvi convivendo com outras mulheres que admiro é que não basta ter apenas impulsionamento e representatividade, apesar de serem fatores essenciais. É preciso entender o universo feminino para não se esquecer da batalha histórica que enfrentamos até hoje para ocuparmos os espaços que nos foram negados silenciosamente por tantas gerações.
O assédio moral — que já é um velho conhecido por nós mulheres cis e trans que vivemos do lado de cá da linha que divide os gêneros — é uma das barreiras mais presentes quando há a busca por investimentos. De perguntas envolvendo a maternidade até a descrença de que elas são capazes de tocar e fortalecer o negócio, está provado que os questionamentos
que essas líderes recebem na sua jornada são em sua grande maioria de cunho detrator — por exemplo, pedindo detalhes de como irão enfrentar possíveis problemas no seu plano, ao invés de perguntas promotoras, como os homens normalmente recebem, pedindo
que expliquem sua visão e o futuro do seu produto.
Isto leva as mulheres fundadoras muitas vezes a serem alçadas ao patamar de seres sentimentais e emocionais, quando deveriam ser enaltecidas como pessoas capacitadas para impactar o setor de inovação. Porém, para que essa evolução ocorra, é necessário que os investidores abandonem as suas mentalidades tradicionais e deem uma chance para conhecer a potência que são as startups fundadas por mulheres.
Viabilizando oportunidades
Observando o mercado como um todo, entre altos e baixos eu sigo animada de que estamos fazendo a nossa parte para que tempos melhores venham para as mulheres e todos os grupos minorizados que estão começando a fazer parte mais ativa no ecossistema de tecnologia. Apoio essa minha certeza nos números que levantamos na própria rede do Google for Startups.
Considerando as startups fundadas por uma figura feminina — que representam 28% dos nossos números, 99% empregam mulheres e em 88% delas existem mulheres ocupando cargos de liderança. Também já vemos resultados de crescimento animadores entre as 33 startups que foram investidas pelo Black Founders Fund, a iniciativa para equidade racial do Google for Startups, onde 48% das startups possuem uma fundadora ou cofundadora mulher.
Esses e tantos dados que encontramos sobre o aumento de mulheres no setor tecnológico são, sem dúvida, o reflexo de alguns elementos: mais mulheres estão se arriscando em cargos de relevância dentro das empresas, com a ajuda de aliados e programas de capacitação que têm se tornado mais frequentes ao longo dos anos. Há além disso o fato de estarmos falando sobre o assunto, debatendo, trazendo visibilidade aos casos absurdos que ainda acontecem, nos preparando melhor e pedindo aos nossos companheiros homens que também se eduquem sobre o tema. Com isso, estamos mostrando ao mercado como a representatividade e a compreensão das singularidades das mulheres podem ser positivas para todo o setor; e como elas, com suas particularidades e visões, podem fortalecer o mundo digital e tecnológico e assim fazer a roda da inclusão girar para toda a sociedade.
Será ótimo quando toda fundadora que busca capital tiver no seu caminho natural uma possível investidora também mulher para ouvir o seu pitch e entender o seu negócio, sendo capaz de valorizar mais facilmente o seu potencial. Ou que pelo menos possa negociar com um investidor homem que demonstre real interesse nas soluções que as ideias desta mulher
podem oferecer. Infelizmente, as notícias e os números mostram que esse cenário ainda está muito longe de ser realidade, mesmo que, como sociedade, só tenhamos a ganhar com o valor que essas empreendedoras geram se apoiadas pelo mercado investidor.
Caminhando para a frente
Em 2019, ano pré-pandêmico, vimos um salto no número de startups lideradas por mulheres que se tornaram unicórnios no mundo. Com a notícia, nós saltamos, de alegria, junto. Porém, de lá pra cá, com tantos novos desafios que a realidade da pandemia impôs principalmente às mulheres, os números foram se tornando novamente discretos, indo na contramão de uma sociedade que se apropriou das soluções digitais para sobreviver.
Hoje, o meu grito é: precisamos caminhar para a frente para alcançarmos o ideal ainda tão distante e não voltarmos ao ponto de onde partimos. Devemos deixar espaço para que o novo continue sendo criado por pessoas diversas e deixar essa mentalidade se enraizar na nossa geração e também nas próximas. Temos de lembrar a cada passo, que qualquer coisa menos do que a equidade não é ideal e nem aceitável. Longe deste quadro tão almejado, que deve ser influenciado pelos governos e organizações públicas e privadas, permaneceremos sem um avanço significativo por uma sociedade mais saudável e justa.
Fonte: www.revistapegn.globo.com