IA desafia fundos brasileiros, e startups precisam recorrer a investidores estrangeiros
Quando recebeu um investimento de US$ 20 milhões (R$ 102 milhões) em rodada liderada pelo Banco do Brasil em fevereiro, a startup Traive superou uma dificuldade que vinha encontrando em conversas com investidores locais.
A fintech desenvolveu um modelo próprio baseado em IA (inteligência artificial) para avaliar o risco de crédito de produtores do agronegócio.
“O ecossistema brasileiro de VC [venture capital, os veículos especializados em investir em startups], ainda é muito limitado em frameworks [premissas] mais antigos. Para eles entenderem essa indústria, eu tenho muito mais dificuldade de conversar com eles do que conversar com os VCs de fora”, afirmou Aline Oliveira Pezente, cofundadora da fintech, em entrevista no Web Summit Rio. A Folha ouviu diagnóstico semelhante de outros fundadores presentes no evento.
Entre os outros investidores da Traive estão os brasileiros Astella e SP Ventures e os estrangeiros BASF e Bread & Butter Ventures.
Com escritórios no Brasil e nos EUA, a startup foi fundada em 2018 por Oliveira e Fabricio Pezente. Junto de Mohammad Ghassemi, vice-presidente de ciência de dados na empresa, eles identificaram que as redes neurais —mecanismo que tenta “imitar” a análise feita pelo cérebro humano— que já existiam no mercado não davam conta de fazer análise de crédito de um setor como o agronegócio.
“O agro é muito dinâmico. Não necessariamente os eventos futuros aconteceram com frequência suficiente no passado para uma rede neural clássica aprender com isso e dar um resultado que não alucina [quando a IA entrega respostas incorretas] “, explicou a cofundadora da Traive.
A startup então desenvolveu uma arquitetura de IA que faz a análise a partir de modelos gráficos que representam as cadeias agrícola e financeira.
Oliveira disse que outra dificuldade encontrada pela Traive no país é a de encontrar profissionais capacitados.
“Infelizmente para crescer eu tenho que contratar talento fora. É um desafio no Brasil fazer uma companhia deep tech [modelo de negócio baseado em desenvolver tecnologias]”.
A uruguaia Brain Logic AI, startup que criou uma assistente virtual por WhatsApp, é outra que prioriza conversas com investidores americanos. Ela recebeu um aporte de US$ 5 milhões no ano passado do Factory HQ, fundo do Vale do Silício especializado em investimentos em IA.
“É provavelmente verdade o que dizem que eles estão mais habituados a esses tipos de projetos. No entanto, há investidores muito bons no Brasil, Argentina e México. Acho que uma das principais habilidades que um empreendedor tem que ter é a capacidade de explicar de forma muito simples um projeto muito complexo”, afirma Juan Pablo Pereira, cofundador da empresa.
A uruguaia lançou no ano passado a Zapia, assistente virtual de IA no WhatsApp que acumula 1 milhão de usuários na América Latina. O objetivo da Brain Logic é fazer do Brasil, país que é o terceiro no mundo em número de usuários do aplicativo, seu principal mercado.
Ela acaba de ser selecionada para um programa de aceleração do Google nos EUA para startups que são caracterizadas como “AI-first”, que colocam a IA no centro do modelo de negócio. A uruguaia foi a única entre as selecionadas que tem como principal mercado a América Latina, afirmou Pereira.
A classificação AI-first também é usada pela plataforma de dados Sling Hub para identificar startups da América Latina que possuem uma IA proprietária e receberam investimento neste ano.
Foram US$ 198 milhões em 54 rodadas de investimento em 2024 —o Brasil correspondeu por 55% desse total. O maior aporte do ano até agora nesse nicho foi o anunciado pela Traive.
O investidor mais atuante no período foi a Indicator Capital, que participou de três rodadas, nas startups Umgrauemeio, Cogtive e Neowrk.
Gestora fundada em 2014 com escritórios no Brasil e no Vale do Silício, ela nasceu voltada a empresas de “deep tech”. A Indicator foi o primeiro veículo brasileiro a investir em uma startup de realidade virtual, com o aporte em 2017 na Árvore, estúdio voltado a narrativas imersivas em jogos, lembra o cofundador da Indicator, Derek Bittar.
Questionado sobre se o mercado brasileiro ainda carece de investidores ambientados em novas soluções de IA, Bittar reconheceu que esse é um gargalo do setor.
“Nós na Indicator investimos naquilo que os nossos concorrentes não conseguem entender. A gente gostaria de ajudar mais do que as 25 empresas nas quais a gente espera investir no nosso fundo 2”.
Com R$ 333 milhões, o segundo fundo da gestora foi lançado em maio de 2021 e já investiu em 11 startups. A Indicator diz já ter avaliado em sua história 956 empresas de Internet das Coisas —707 delas brasileiras.
Orlando Cintra, fundador e CEO do grupo de investimento-anjo BR Angels, afirma que uma das tarefas dos investidores é conseguir diferenciar as empresas que adotam IA para gerar valor para o negócio das que apenas afirmam usar a ferramenta para aproveitar a febre do momento.
“Nós ainda olhamos muita coisa que é mais do mesmo. Então, ainda tem um percentual muito grande de IA que não é disruptivo. Você fala, ok, isso é inteligência artificial ou é uma automação? É uma parcela pequena de negócios que de fato traz algo que faz os olhos brilharem”, afirma.
Para Thiago Kapulskis, analista de global tech no Itaú BBA, as startups brasileiras podem se diferenciar na aplicação de IA em soluções voltadas ao consumidor final.
“Acho que há uma oportunidade gigantesca, temos várias empresas que já têm usado a inteligência artificial para criar uma solução diferente, maior eficiência, para criar melhor relação com o consumidor”, afirmou Kapulskis.
Fonte: Folha de S. Paulo
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