Sem regulamentação, startups brasileiras de cannabis crescem em outros países
Os destinos preferidos das startups brasileiras que emigram para desenvolver seu trabalho com a planta são Canadá, Estados Unidos, Uruguai e Espanha
Os brasileiros Camila Viana e Lucas Cançado tinham acabado de se formar em geologia, em 2018, quando tomaram uma decisão ousada: fazer as malas e ir para o Uruguai para produzir e vender em larga escala flores de cannabis. “Juntamos todas nossas incertezas e inseguranças e partimos mesmo assim”, contam. A ideia original era abrir um clube canábico, mas pivotaram ao perceber que mesmo estando em um país legalizado, o processo seguia burocratizado.
Então partiram para o plano B: gerenciar cultivos de cannabis no país hermano, atividade que se mantém até hoje, mesmo depois de lançar a CBeDifferent, uma linha de cosmética natural com a cannabis entre os ingredientes. Hoje, com mais dois sócios brasileiros, eles operam a fazenda Meraki, de 70 hectares, no Uruguai. No mês que vem, devem colher o equivalente a um hectare de cânhamo industrial, cuja produção é destinada, em sua maioria, ao mercado Suíço de flores boutique.
A história de Viana e Cançado está longe de ser isolada. A falta de uma regulação que permita o cultivo e o manejo de cannabis em território nacional tem levado cada vez mais brasileiros a deixar o Brasil para empreender com esse setor em outros países.
Uma das precursoras desse movimento é a empreendedora Barbara Arranz. Em 2020 ela mudou para a Espanha para desenvolver uma linha de cosméticos à base de cannabis. Hoje, com a marca Hemp Vegan, ela comercializa sua linha completa na Espanha, mas apenas alguns produtos estão disponíveis no Brasil. Por aqui, a única maneira de importar produtos com canabinoides da Hemp Vegan, como creme facial, sabonete e shampoo, é com receita médica.
A brasileira Caroline Heinz, que foi CEO da fabricante de canabidiol de Hemp Meds por vários anos, também enfrentou o mesmo desafio no mercado nacional quando decidiu empreender. Os produtos de sua marca, Sphera Joy, atualmente estão disponíveis sem necessidade de receita médica apenas nos Estados Unidos, onde ela trabalha e mora. A marca, fundada no ano passado, faturou, até agora, US$ 30 mil.
A hora e a vez
“Não podemos ficar de braços cruzados aguardando a mudança na legislação brasileira. Quem quiser investir e empreender no setor de cannabis tem de começar logo para sair na frente e estar na vanguarda quando o cenário do nosso país avançar”, afirma Alex Lucena, sócio e cofundador da The Green Hub (TGH) — aceleradora de startups brasileiras com foco em cannabis.
A companhia de Lucena já acelerou 12 startups de brasileiros que atuam em países como Uruguai e Canadá. Entre as companhias do portfólio está a Blue Hemp — resultado da fusão de duas companhias — que tem marca registrada tanto no Brasil como no Canadá e produz molhos para alimentos à base de cannabis. Entre os sócios da empresa está Túlio Rodrigues, executivo com quase 30 anos de experiência em grandes empresas, como a Ambev, de onde saiu quando ocupava o cargo de gerente de trade market.
“Vamos transferir nosso expertise de aplicação do lúpulo, um primo da cannabis, em alimentos e bebidas para passar a desenvolver linhas de condimentos, snacks, vinhos, azeites de oliva, temperos, entre tantos outros produtos, com a cannabis”, diz Rodrigues.
A despeito de suas dificuldades particulares, a indústria da cannabis parece irresistível aos empreendedores que querem construir um ecossistema do zero. E o espaço para inovação é grande. Mas apesar de tanto espaço, é interessante observar que vários empreendedores se apinham em torno de uma ou duas ideias de negócios.
Os marketplaces de médicos e importação de produtos, por exemplo, é um nicho com uma ou duas grandes referências e muitos outros se estapeando para chamar a atenção do público. Com tantas oportunidades para inovação, ainda tem muita gente repetindo modelos. “Esse business que começou lá atrás com a Dr. Cannabis está lotado”, diz Lucena, referindo-se à startup pioneira no ramo no Brasil, lançada em 2018.
Oceano Azul
Entre as empresas que decidiram criar algo realmente novo, sem repetir modelos já existentes, está a Adwa, que se dedica ao melhoramento das genéticas de sementes e preparação do solo para melhoria da qualidade da colheita.
De Viçosa, Minas Gerais, Sérgio Ferreira, sócio e fundador, encabeça também outros projetos. O mais recente deles é um aplicativo. O Personal Grower monitora o cultivo, indicando o que falta, o que sobra, o clima, gerando novos dados e aprimorando os antigos através de sistemas de big data e machine learning.
Apesar do desenvolvimento da Adwa ainda não ter utilidade no país justamente por conta da falta de regulamentação, eles encontraram um modo de desviar tal barreira. Recentemente a Adwa começou a disponibilizar o seu serviço de aplicativo para a fazenda Meraki, gerenciada por Viana, Cançado, e seus dois sócios, Adriano Mizuno e Caetano Amorim, e que foi citada no início desta matéria.
Outro segmento que conta com uma startup brasileira atuando é o de serviços financeiros. Viabilizar transações financeiras é um dos maiores desafios desse setor, de acordo com uma pesquisa recente da Whitney Economics. Os pesquisadores ouviram opiniões de 396 empresas de cannabis licenciadas sobre os desafios existentes no mercado dos EUA e mais de 70% dos entrevistados disseram que a “falta de acesso a capital bancário ou de investimento” era seu principal desafio.
Nos Estados Unidos, a startup Flowhub é referência na área e atraiu a atenção do homem mais rico do Brasil, Jorge Paulo Lemann. Ele investiu mais de US$ 20 milhões na companhia, criada em 2015.
Por aqui, o software brasileiro Cannapag inovou por um caminho parecido, possibilitando transações através de um sistema gerencial das vendas transacionadas e uma plataforma de e-commerce em conformidade regulatória. A startup recebeu um aporte de valor não revelado, entre anjo e pré-seed – entre R$ 180 mil e R$ 300 mil.
Com o aporte, a empresa dá os primeiros passos em direção à internacionalização. “Nos últimos meses realizamos algumas visitas em potenciais clientes em cinco países diferentes para entender as demandas internas e do mercado regional”, conta Murilo Gouvêa, seu cofundador.
Regulamentação
Atualmente o setor espera por uma regulamentação que coloque o Brasil em posição de igualdade com outros países, pelo menos na América Latina, por meio do projeto de lei 399/2015, que desde 2015 espera por uma aprovação. O projeto está parado na Câmara dos Deputados.
Depois de ser discutido algumas vezes pela comissão especial, a última votação teve um placar apertadíssimo –17 a 17– que só saiu vitorioso pelo voto de minerva de seu relator, Luciano Ducci (PSB). Mas a aprovação, de forma terminativa, não passou para plenário. E é justamente neste ponto que o debate se encontra.
“Há uma avaliação de que o presidente Bolsonaro vetaria esse projeto. Ainda mais num período eleitoral. Não sabemos se o projeto seguirá ou não para o Senado ainda em 2022”, analisa o consultor e advogado do setor da cannabis, Pedro Gabriel Lopes.
Além do PL 399 – que contempla o cultivo em solo brasileiro e os usos industriais e medicinais da erva –, temos também a revisão da RDC 327 no horizonte. Trata-se de uma resolução da Anvisa que regulamenta a fabricação, a comercialização e a importação de produtos derivados de cannabis para fins medicinais.
Desde 2016, esse tipo de produto pode ser importado, mediante requisição e uma série de exigências. A RDC 327 deve passar por uma revisão neste ano. Isso certamente impactará os planos das empresas interessadas em atuar nesse setor no Brasil, ao manter ou redefinir as regras de conduta do mercado. Os empreendedores brasileiros do segmento, aguardam ansiosamente por mudanças.
Fonte: www.infomoney.com.br